Relatório aponta detalhes de mortes de votuporanguenses
Relatório aponta detalhes de mortes de votuporanguenses
Publicado em: 14 de dezembro de 2014 às 08:59
Comissão Nacional da Verdade aponta a responsabilidade direta de 10 agentes do Estado, entre eles delegados, oficiais do Exército e médicos-legistas, pela tortura e execução de quatro militantes de esquerda da região de Rio Preto durante o regime militar (1964-1985).
Em relatório divulgado na última semana, a comissão defende a punição para os seis deles que estão vivos. No total, a comissão instaurada em 2012, acusou 377 pessoas (196 delas ainda vivas) pela morte e desaparecimento de 423 militantes durante a ditadura. A conclusão é de que essas pessoas não podem ser beneficiadas pela Lei da Anistia e devem ser punidas pela Justiça. O Ministério Público Federal pretende solicitar documentos à comissão para impetrar novas ações penais contra os responsáveis pelas mortes.
O documento da comissão, com 4,3 mil páginas, é o mais completo já produzido no País sobre a ditadura e traz detalhes reveladores do assassinato dos irmãos Dênis e Dimas Casemiro, de Votuporanga; Aylton Adalberto Mortati, de Catanduva, e Gilberto Olímpio Maria, de Mirassol, todos no início dos anos 70, no governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974).
O principal são as circunstâncias da morte de Dimas Antônio Casemiro. A narrativa oficial apontava que o dirigente do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) havia morrido fuzilado em 17 de abril de 1971 próximo de um “aparelho” do MRT no bairro Água Funda, Capital, ao resistir à ordem de prisão de agentes do Destacamento de Operações de Informações - Coordenação de Defesa Interna (Doi-Codi).
O laudo necroscópico do IML, no entanto, só foi solicitado pelo delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) Alcides Cintra Bueno Filho dois dias depois.
O laudo, assinado pelo médico-legista João Pagenotto no dia 19 de abril, registrou quatro ferimentos causados por arma de fogo, mas ignorou claros sinais de agressão contra Dimas, segundo a comissão. “As fotos do corpo de Dimas mostram lesões na região frontal mediana e esquerda, no nariz e, principalmente, nos cantos internos dos dois olhos, não descritas no laudo necroscópico e indicativas de tortura”, concluiu a comissão, para quem a diferença de dois dias entre a suposta morte em tiroteio e o laudo “não seriam erros ou mera confusão, (...) mas uma tentativa de encobrir sua morte sob torturas”.
Para o filho de Dimas, Fabiano César Casemiro, que mora em Votuporanga, a informação de que o pai foi torturado antes de ser morto era desconhecida. “Sempre soubemos que ele foi morto em tiroteio”, disse Fabiano, que tinha quatro anos quando o pai foi morto. A mãe dele, morta nos anos 90, também foi torturada.
“Esse é um assunto muito difícil para mim.” Fabiano elogiou o trabalho da comissão. “Tinha que chegar aos responsáveis por esses crimes.” O corpo dele nunca foi encontrado.
A comissão responsabilizou três pessoas pela morte e desaparecimento de Dimas: Alcides Cintra Bueno Filho, delegado responsável pela operação que resultou na morte do militante, e João Pagenotto e Abeylard de Queiroz Orsini, médicos-legistas que assinaram laudo necroscópico falso sobre as causas da morte de Dimas. Dos três, só Orsini é vivo.
Torturas Dênis, irmão mais velho de Dimas, também foi torturado por um mês antes de ser assassinado. Ele foi preso em abril de 1971 por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em Imperatriz, Maranhão, onde tentava montar uma guerrilha rural da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) a mando de Carlos Lamarca. A versão oficial informava que Dênis teria sido morto pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury ao tentar fugir da viatura policial no trajeto entre Ubatuba e São Paulo. Mas, em depoimento à Comissão Estadual da Verdade, Waldemar Andreu, militante de Votuporanga que estava preso no Dops na época, disse ter visto Dênis no Dops em 18 de maio de 1971.
Quando viu o rapaz franzino passar por sua cela, mesmo de capuz, Waldemar não teve dúvidas: era o amigo.“Dênis?”, perguntou Waldemar. Nesse momento, o jovem virou a cabeça coberta, mas logo foi empurrado pelos policiais em direção à porta.
Apesar das evidências de tortura, o laudo necroscópico, assinado por Renato Cappellano e Paulo Augusto de Queiroz Rocha, apenas descreve a trajetória dos tiros no corpo, omitindo o estado do seu corpo. Por isso, a comissão citou o médico-legista como um dos responsáveis pela morte, ao lado dos delegados do Dops Sérgio Fleury e Alcides Cintra Bueno Filho, e do auxiliar de necropsia Jair Romeu, que sepultou o corpo no cemitério de Perus sem avisar a família. “O mais importante do relatório da Comissão da Verdade foi demonstrar que a tortura e as execuções foram uma política de Estado, com uma cadeia de comando por trás de cada morte, e não atos isolados de um ou outro agente”, disse o procurador do MPF Andrey Borges de Mendonça, que integra o grupo Justiça e Transição do MPF, responsável pelas ações cíveis e criminais contra representantes do regime militar. Militares reagem a relatório
O Clube Militar, entidade que reúne os oficiais da reserva das Forças Armadas, criticou duramente o relatório da Comissão Nacional da Verdade. “Ao analisarmos, cautelosamente, a lista dos nomes dos agentes do Estado citados como possíveis executores de crimes na opinião dessa comissão desacreditada, notamos que é muito mais grave a injustiça cometida. Há no seu conteúdo muitas pessoas, mortas e vivas, que em momento algum tiveram seus nomes vinculados a qualquer evento que pudesse levá-los a estar nesse relatório leviano”, afirma nota assinada pelo presidente da entidade, Gilberto Rodrigues Pimentel.
O advogado do general Nilton Cerqueira, Rodrigo Henrique Roca Pires, disse que a comissão adquiriu “tons panfletários”. “Deveria haver mais sobriedade em lançar nomes no rol de acusado de que honrou o País”, afirmou. Ele não descarta ingressar com ação judicial por danos morais contra a União. O Diário telefonou para a casa do major Carlos Alberto Brilhante Ustra, em Brasília, mas uma mulher que não se identificou disse que ele não fala com a imprensa.
Os outros quatro acusados que estão vivos não foram localizados na última semana. Esposa pede punição Tímido. Essa foi a impressão que a presidente da ONG Tortura Nunca Mais, Victoria Grabois Olímpio, teve do relatório da Comissão Nacional da Verdade. “Fazer recomendações para punir os responsáveis à Organização dos Estados Americanos (OEA) já fizeram.Agora é hora de agir”, disse ela, que é a mulher do mirassolense Gilberto Olímpio Maria, morto na guerrilha do Araguaia por militares. Victoria se refere à decisão da OEA, de 2010, que sentenciou o Brasil a investigar os crimes da ditadura e punir seus autores. O relatório da entidade serviu de base para que o MPF impetrasse dez ações criminais por homicídio, formação de quadrilha e sequestro qualificado contra militares, delegados e médicos-legistas do regime militar. Três delas estão em andamento e sete foram paralisadas pela Justiça - o MPF recorreu em todos os casos.
Uma delas acusa o general do Exército Nilton de Albuquerque Cerqueira pelo caso Riocentro. Agora, Cerqueira também é responsabilizado pela morte de Gilberto Olímpio Maria no Natal de 1973 na divisa entre o Pará e o atual Estado de Tocantins. Ele e mais 15 integrantes da guerrilha foram assassinados em uma emboscada no meio da mata, conforme revelou o livro “Mata!”, do jornalista Leonêncio Nossa, em 2012. Em depoimento à comissão, o policial militar aposentado João Alves de Souza revelou detalhes da execução de Gilberto. “O fato que aconteceu é que eles o mataram, não sei se cortaram a goela dele fora, cortaram o pescoço dele fora lá e mataram ele covardemente” disse. O corpo, que nunca foi localizado, teria sido enterrado entre Marabá (PA) e Xambioá (TO) Dimas e Mortati seguem desaparecidos Nos últimos dois anos, peritos argentinos e da Polícia Federal se debruçaram sobre as ossadas encontradas há 24 anos em uma vala clandestina no cemitério de Perus, em São Paulo.
O objetivo era realizar exames de DNA nos ossos para descobrir quais pertenciam a 46 militantes desaparecidos e sepultados no cemitério, entre eles Dimas Antônio Casemiro e Aylton Adalberto Mortati. Mas os resultados, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, foram negativos. A indefinição abala a família Mortati, de Catanduva. “É uma ferida aberta que carregamos”, diz a professora aposentada Janete Mortati, 65 anos, prima de Aylton. A última vez que ela viu o primo foi no Carnaval de 71, em Catanduva. Na época, fazia poucas semanas que Aylton havia regressado clandestinamente ao País. Dois anos antes, já como dirigente do Movimento de Libertação Popular (Molipo), sequestrou um Boeing da Varig em pleno voo entre o Rio de Janeiro e Buenos Aires e obrigou o piloto a pousar em Cuba, onde passou por treinamento de guerrilha. Aylton foi capturado por agentes do DOI/CODI em um “aparelho” do Molipo na Capital, em novembro de 1971. Militantes de esquerda afirmaram à comissão que o dirigente foi torturado e morto no DOI/CODI. Segundo a comissão, foi localizado nos arquivos do Dops do Paraná uma lista de militantes “falecidos” com o nome de Aylton.
A comissão responsabilizou o major Carlos Alberto Brilhante Ustra e o delegado David dos Santos Araújo pela morte de Aylton. O primeiro era comandante de operações do DOI/CODI na época, enquanto o delegado requisitou exame necroscópico fraudulento sobre a morte do jovem.
O MPF apura a morte por meio de um procedimento de investigação preliminar, etapa que antecede a denúncia. Os corpos de Aylton e Dimas teriam sido enterrados em Perus, nas quadras 1 e 2. Mas, em 1976, foram exumados e enterrados novamente em uma vala clandestina, que só foi descoberta em 1990. Desde então, peritos tentam identificar as ossadas. Em 2015 está programada uma análise genética nas ossadas, segundo o relatório da comissão.
(Allan de Abreu – Diário da Região)
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